terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Trégua

Quase dois meses sem escrever por aqui. Azar o meu; sorte da literatura.

Mas meu espírito voltou aos eixos. Hora de teclar.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Memories of the Future

“I live in such a distant future that my future seems to me past, spent and turned to dust."

Sigizmund Krzhizhanovsky

terça-feira, 13 de outubro de 2009

O canto das cigarras

Foi numa manhã fresca de domingo que descobri as lembranças de uma infância feliz. Setembro chegara devagar, os tempos de seca iam-se embora, as primeiras nuvens da primavera acomodavam-se gentilmente no céu monocromático de Brasília. O sol estava cansado e perdia gradativamente suas cores, do mesmo modo que um lutador perde suas forças: um novo dia, um novo assalto. Era uma manhã feita para as pessoas, não para as coisas do mundo.

Brasília oferece muitas manhãs assim, manhãs que convidam as crianças a gastar suas energias nos gramados da cidade, os malhadores a suar no parque, os velhinhos a passear pelas quadras - e os demais a ver de perto tudo isso. Saí para tomar café-da-manhã numa padaria perto de casa: eu, os jornais e o dia. No caminho, passei por mangueiras e amoreiras que balançavam lentamente ao sabor do vento, aquele vento preguiçoso que antecede as chuvas da primavera, o movimento das folhas marcando o passo dos corredores na calçada e do meu ritmo no gramado verde-claro.

Sentei-me numa mesinha próxima ao verde da grama e das árvores, pedi um café com leite e, antes de abrir os jornais, parei para olhar o dia. Reparei então que as cigarras começavam a cantar, um coro desordenado de insetos e decibéis pedindo com estridência, em tons cada vez mais agudos, o amor da primavera. Em Brasília, é um ritual que se repete anualmente com a perfeita simetria das estações. Pensei nas cigarras. Elas vivem como larvas durante anos e anos, debaixo da terra, alimentando-se da seiva que escorre pelas raízes das árvores, até estarem prontas para subir à luz. Esse longo e doloroso prelúdio culmina numa intensa vida de duas semanas, nas quais as cigarras-macho cantam desesperadamente, gritam sem parar canções descomunais, sons poderosos que não cabem em seus pequeninos corpos, esforçam-se até a exaustão, tudo na tentativa de seduzir as cigarras-fêmeas. A cantoria só cessa quando elas conseguem acasalar - ou quando morrem tentando. Depois que procriam, é o fim. Cigarras são insetos limitados. Não sabem afastar predadores. Não vivem o suficiente nem mesmo para aprender a bater corretamente suas asas: cigarras vivem apenas para o ato do amor.

Um sujeito cínico, esse típico homem dos nossos dias, tão frívolo em sua seriedade pusilânime, diria que as cigarras vivem apenas para nos atazanar, elas e seus gritinhos histéricos. Talvez. Mas não naquela manhã de domingo. Naquela manhã de domingo eu finalmente consegui ouvir o que elas cantavam. Afastei meus outros sentidos, concentrando-me em buscar o significado dos sons zimmmmmmmmm até me acostumar com aquele timbre contínuo e suplicante de zimmmmmmmmmmm até que o zimmmmmmmmm se aproximasse de mim zimmmmmmm e o zimmmmmmm estivesse dentro, e não mais fora, e deixei sem medo que o zimmmmmmm me levasse ao que eu desconhecia, sim, não há mais controle, e ouvindo zimmmmmm voltei aos breus da memória que não existia, da infância perdida ou inventada, da infância sem o abandono e a dor, da criança que ouvia o zimmmmmm nas manhãs distantes de setembro e pressentia que havia na natureza o amor que não havia nas pessoas, e que o mundo poderia fazer sentido desde que o zimmmmmmm estivesse lá, naqueles poucos dias, fazendo-lhe companhia, sempre igual, sim, sempre do mesmo jeito, o zimmmmmm era a certeza que expulsaria o vazio, e ouvindo o zimmmmm nas manhãs perdidas de um tempo fora do tempo tudo daria certo, sim, eu sinto isso de novo, o zimmmmmm não é apenas um barulho nem uma epifania vulgar, as coisas não são como são, está ali o coração da poesia e do devir, ali pulsa o futuro da vida e da morte, e não o futuro dos homens, onde há morte e tudo que a antecede, mas o futuro como certeza de estar-no-mundo para sempre, zimmmmmm, estar como antes, como agora e como depois, estar plenamente, sem o vazio, na vida do que é infinito.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Tempos excessivos

Na ausência da força de espírito para escrever, registro aqui as belas palavras de Fernando Pessoa, sopros poéticos de minhas páginas ainda em branco, à espera da sublevação do inconsciente:

"Sopra demais o vento
Para eu poder descansar...
Há no meu pensamento
Qualquer cousa que vai parar...

Talvez esta cousa da alma
Que acha real a vida...
Talvez esta cousa calma
Que me faz a alma vivida...

Sopra um vento excessivo...
Tenho medo de pensar...
O meu mistério eu avivo
Se me perco a meditar.

Vento que passa e esquece,
Poeira que se ergue e cai...
Ai de mim se eu pudesse
Saber o que em mim vai."

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Your sweet semblance

"O that you were yourself, but love you are
No longer yours than you yourself here live.
Against this coming end you should prepare,
And your sweet semblance to some other give.
So should that beauty which you hold in lease
Find no determination - then you were
Yourself again after your self's decease,
When your sweet issue your sweet form should bear.
Who lets so fair a house fall to decay,
Which husbandry in honour might uphold
Against the stormy gusts of winter's day
And barren rage of death's eternal cold?
O none but unthrifts, dear my love you know,
You had a father, let your son say so."

Shakespeare's sonnets.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

O extermínio da memória

Aos primeiros raios de sol do Natal de 1973, um grupo de elite do Exército brasileiro adentrou a densa selva da região de Marabá, no sul do Pará, à caça dos comandantes do movimento armado que ficou conhecido como a Guerrilha do Araguaia, numa alusão ao rio de águas escuras que por ali corre. Os militares que integravam essa equipe de ataque pertenciam aos quadros do Centro de Inteligência do Exército, o temido CIE. Eles haviam se submetido a um rigoroso programa de combate na selva, estavam equipados com fuzis Fal e Parafal, armas capazes de estraçalhar carne humana, e vestiam trajes civis, como calças jeans e camisas, num sinal de que aquela era uma missão clandestina. Todos sabiam por que estavam lá. Estavam lá com ordens expressas de assassinar outros brasileiros, eliminando com eles quaisquer vestígios de existência da guerrilha.

Não poderia haver prisioneiros, e prisioneiros não houve. Aqueles militares sabiam que encontrariam, mais cedo ou mais tarde, somente um punhado de guerrilheiros famélicos e mal equipados, cuja esperança, àquele momento, resumia-se a sobreviver. Os guerrilheros provavelmente também sabiam o que iria acontecer, quando esse confronto sobreviesse. Quando os militares finalmente avistaram os guerrilheiros no final daquela manhã de Natal, não houve surpresas. A guerrilha estava liquidada. Cinco dos 16 guerrilheiros morreram ali mesmo – inclusive o principal líder dos comunistas, Maurício Grabois, oVelho Mário. Os outros 11 fugiram pela selva, cada um seguindo seu caminho. Todas as trilhas, entretanto, levaram ao mesmo destino.

Nos meses seguintes a essa ofensiva, conhecida como Chafurdo de Natal, que desmontou o que restara da guerrilha, os remanescentes foram capturados, torturados e executados. Um a um. Sem clemência. Os números mais confiáveis demonstram que os militares mataram 41 guerrilheiros, quase sempre depois de sugar-lhes informação e sangue. Do lado do Exército, não há relatos de baixas. Só há uma palavra para definir o que se passou na selva, no decorrer daqueles dias lúgubres: massacre. Cabeças de guerrilheiros foram decepadas e seus corpos, abandonados insepultos na mata, serviram de refeição para onças e porcos selvagens. Os depoimentos dos militares envolvidos no extermínio indicam que o que sobrara dos guerrilheiros foi enterrado em locais ermos da selva. Meses depois de encerrado o conflito, os restos mortais dos guerrilheiros foram queimados em fogueiras humanas preparadas pelo Exército, numa missão conhecida na caserna como “operação limpeza”.

Transcorridos 35 anos, a eliminação dos guerriheiros do Araguaia permanece como o episódio mais traumático e violento da ditadura. A memória daqueles dias sangrentos ainda assombra o país. O Exército e as autoridades civis não esclareceram até hoje o que se passou entre o fim de 1973 e o começo de 1974, quando os guerrilheiros foram exterminados. Explicações nunca foram concedidas. Corpos nunca foram achados. E os responsáveis nunca foram processados. Vítimas colaterais de uma chacina que não poderia ter existido, mas existiu, os familiares dos guerrilheiros foram abandonados ao limbo de suas lembranças.

As buscas que ora se iniciam constituem a última chance de muitos dos familiares dos guerrilheiros em dar um enterro a quem perderam. Os ossos que porventura sejam encontrados também representam, para esses parentes em eterna vigília, a possibilidade de conhecer um pouco do que se passou na selva. Triste do país que depende disso, de vestígios de ossos enterrados numa selva distante, para conhecer seu passado e sua verdade – quando ambos deveriam aparecer em documentos oficiais e em pedidos de desculpa dos responsáveis, muitos dos quais ainda vivem. É este o Brasil de 2009. Escreveu o escritor americano William Faulkner, em busca dos significados da memória: “O passado nunca está morto. Nem ao menos é passado”. O Brasil que ficou no Araguaia nunca morrerá, mas merece ser enterrado com dignidade.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Pôr-do-sol

Ergui-me da cadeira com preguiça, permitindo que alguma força desconhecida me conduzisse à janela. O sol abandonava lentamente o horizonte, levando embora as cores do céu e os rancores do dia. Eu apenas olhava. Absorvi imóvel as primeiras sombras da noite, na esperança de que suas ilusões trouxessem sentido às dores sem fim. Tive a sólida sensação de que aqueles instantes prolongariam-se por horas. Percebi, um tanto confuso, que o espírito da noite na verdade redobrava a força do que eu convencionara em chamar de ataques de consciência. Não havia mais como lutar.

Foi então que divisei algo, algo que bordejava as sombras do horizonte, algo disforme, adaptando-se furtivamente ao verde da floresta, ora aparecendo como um círculo, ora como um retângulo, algo sem cor e sem alma, movendo-se como espuma ou vento, talvez como fumaça ou ainda como uma névoa espessa, uma solução gasosa que ganhava velocidade ao atravessar os caules e as folhas e as gramas que nos separavam, devorando tudo como uma praga bíblica. Fechei os olhos e abri a janela. Senti aquela fumaça virar massa dentro dos meus ossos, congelando-os com fúria, aquela massa enegrecida pelos restos que colheu no caminho, indiferente à dor e ao desespero, ao amor e à vida, eu era apenas mais um objeto, disforme também, e soube assim que ela estava concentrada tão-somente em trilhar seu caminho de destruição.

domingo, 13 de setembro de 2009

Bardo sabe-tudo

"Inconstância, teu nome é mulher"
Shakespeare, Hamlet

Do poder

"Qu'importe, n'est-ce pas, d'humilier son esprit si l'on arrive par là à dominer tout le monde?"
Camus, La Chute

União

Se não estiver lá desde o começo, desde aquele instante infinito no qual uma alma invade furtivamente a outra, sem dar chance às lentas defesas da consciência, uma alma misturando-se à outra na comunhão imperceptível da vida, se já não estiver lá cintilando e explodindo e confundindo seu brilho com o brilho das primeiras ilusões, as únicas ilusões que significam mais do que a verdade, tudo o mais que se seguir nunca será real - será uma imitação; ainda que verdadeira e prazerosa, será tão-somente isso: uma imitação.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Saudades

Quando senti que seu calor se aproximava do meu e que ela oferecia silenciosamente suas mãos aos meus ombros, eu soube que aquele momento trespassava minha alma, e que logo se tornaria uma lembrança, e eu desejei com todas as minhas forças ter a sorte de que os anos não levem embora esse instante de ternura, e que ele me faça companhia até o fim do que pode acabar.

As luzes de Nova York

Ele saltou ligeiro do vagão, sem saber onde descera nem qual saída tomaria. Caminhava depressa no vazio dos túneis subterrâneos, talvez na esperança de que seus passos acompanhassem seus pensamentos. Finalmente subiu, saltando as escadas estreitas num estranho compasso pendular, estabelecido pela livre interpretação das notas que Coltrane lhe gritava ao máximo volume. A cidade assomou à sua frente, e com ela o bloco de calor cinza que o verão depositava naquelas ruas. Surgiram pessoas. Nas ruas de Nova York, as pessoas não eram pessoas; eram obstáculos móveis entre um ponto e outro dos caminhos que constituíam o tempo de uma cidade em eterna fuga de si mesma. Não havia dúvida: era ali o melhor lugar do mundo para se perder sem saber disso. Ele divisou as luzes de Nova York à sua volta, quarteirões elevando-se em raios verdes, azuis, amarelos, vermelhos, roxos, brancos, laranjas, e mais algumas cores com certeza, um corredor polonês de letreiros em neon ou algo do tipo. Foi então que ele avistou a luz vermelha para pedestres e decidiu que chegara a hora de parar. Ele desligou o iPod, retirou lentamente os fones do ouvido e olhou para frente, concentrando-se na espera da luz branca que eventualmente apareceria, ela sempre aparecia, indicando a permissão para seguir caminho.

La vérité et le temps

N'importe quel temps, personne a trouvé la certitude sur la vérité de ce qui est vrai - sans illusions transcendentaux, bien sûr. Ce n'est pas acceptable de donner une réponse limpide et incontournable. Cette question s'agit de deux concepts sur lesquels il n'y a pas de consensus. Les têtes plus privilégiées de la pensée occidentale ont consacré leur temps à la recherche de ce type de vérité. Et, après tout ça, nous sommes maintenant ici: sans vérité et sans temps.

Je ne crois pas à la notion de vérité, c'est-à-dire, de la possibilité d'apreendre ce que nous appelons réel. Pour nous, une chose ou un concept est vrai lorsque nous le réputons comme réel, quand nous nos certifions de son existence. Cette idée est admissible dans les cas des choses empiriquement demontrées, expérience fait dans un point certain du temps, avec les règles de la méthode scientifique. Mais ce cas sont rares et font référence aux choses plus tangibles du monde: la physique, la chimie, la biologie.

Le problème de cette pensée se déroule dans les verités ontologiques, les verités impalpables de l'être. C'est un univers vaste et complexe. Il y a sur ce monde chaotique, sans règles intelligibles, les sentiments, comme l'amour et l'haine, les désirs, les illusions, la creativité, l'imagination, la poésie, la religion - tout ça que nous constituent humains. Ces sont les vérités que nous attachons. Dans ce monde, la vérité est une illusion, et l'illusion est la vérité.

"Le désir", a écrit Shakespeare, "est le père de la pensée." Freud a crée sa théorie sur le fonctionnement de la psyché, la psychanalyse, en vue de la notion dont les désirs, nos vérités, sont gouvernées par l'inconscient, dans un lieu presque inapprochable pour la conscience. L'impulse de l'être pour expliquer lui-même et les choses du monde est paru sur la necessité de trouver signifié sans la reconaissance de l'inconscient, de nos désirs le plus profonds et, pour quelques-uns, immoraux. L'invention de la transcendance, de la religion, des dieus, de la morale se sont passé à cause de cette répression élémentaire: illusions prises comme vérités.

Je connais seulement une vérité, la seule verité vivante de nous tous: la certitude de la mort. Et le guardien implacable de cette vérité est le temps. La mort ne se soumet à rien.

sábado, 8 de agosto de 2009

Pontapé no cinismo

Gostei do texto. Não sei quem é o autor. Quem será?

Confira:

"Eis que, pouco depois de completar 185 anos de vida, o Senado está agonizando dolorosamente, ao vivo e em cores, sob a apatia de nossos olhos resignados. O triste espetáculo que vimos nos últimos dias configura-se no prenúncio de dias ainda mais tenebrosos, que certamente se sucederão até que um pontapé no oligarca José Sarney se torne inevitável.

O Senado, assim como qualquer instituição, mede-se pelo tamanho dos homens que lá estão. São homens que fizeram o Senado ser o que sempre foi - uma Casa de exímios oradores e qualificados debates, que norteava a discussão dos caminhos a serem trilhados pelo país.

Hoje, são homens, pequenos homens, homens de baixos princípios e qualificações, que fazem o Senado ser o que é: uma instituição falida e corrupta, que custa 2 bilhões de reais aos nossos bolsos e não contribui em nada para amenizar os problemas arcaicos que ainda persistem no país.

Ganha um cargo comissionado no gabinete de Sarney quem se lembrar de algum projeto de relevância aprovado recentemente pelo Senado. Ou de algum debate profundo acerca de... bem, de qualquer coisa. Não há, nas palavras vazias e pobres que ecoam dos homens que se revezam a todo momento na tribuna do Senado, qualquer réstia de preocupação com os destinos de todos nós.

Educação? Violência? Saúde? Esqueça. Sobrou somente a pequena política, a politicagem dos interesses comezinhos e endinheirados, interesses personificados em figuras como José Sarney, Fernando Collor, Renan Calheiros, Romero Jucá - políticos cujos currículos brilham pelo acúmulo de malfeitorias e pelo vazio de ideias. Seus nomes entrarão na história pela porta dos fundos.

Mas há outros homens no Senado. Eles somam 81. Há os poucos que ousam se insurgir contra a turma da pistolagem, como os senadores Cristovam Buarque e Pedro Simon, mas que o fazem com tal tibieza que suas palavras lhe escapam pálidas e frágeis - e eles se apequenam junto com elas, do alto da tribuna de onde falam, falam e falam... Falam como se estivessem pedindo desculpas por sugerir o afastamento do chefe.

Mesmo o senador Arthur Virgílio, que tem se esforçado para liderar uma solitária reação dos bons costumes, mostra-se um homem de traços gentis, de excessiva lhaneza, assim que fica à frente de Sarney e seus camaradas. Sua paga veio pelas mordidas dos cães que protegem a casa grande.

Há, por fim, a maioria, os que dormem nas sombras do poder, os que são mais discretos em sua mediocridade, aqueles que assistem em silêncio à fogueira na qual arde o Senado. Onde estão as vozes de homens como Marco Maciel e Jarbas Vasconcelos, políticos experientes e ciosos da grandeza institucional do Congresso na nossa democracia? O que fazem no momento em que mais precisamos deles? Por que não os vemos apartar nenhum desses senhores no plenário, dizendo-lhes o que tantos de nós queremos dizer? Que razões comezinhas poderão nos apresentar no futuro, como justificativa para tamanha covardia? O que dirão aos seus filhos e eleitores petistas como Aloízio Mercadante e Eduardo Suplicy?

E no entanto somos, todos nós - senadores ou deputados, homens de governo ou de oposição, empresários ou trabalhores, eleitores ou eleitos - um só povo, unidos por nossa herança comum, definidos por nossas virtudes e, sobretudo, por nossos defeitos. Podemos fracassar como indivíduos - mas nunca como nação. O fracasso de José Sarney como político não pode representar a derrota do Senado como instituição. O Senado é maior do que José Sarney.

É maior porque pertence a todos nós, porque deve servir a nós - e não a eles, os piratas do Congresso.

Chegará o dia em que Sarney, Renan, Collor e as demais figuras de má qualidade que ali estão, assim como nós, com todas nossas virtudes e nossos defeitos, não estarão mais aqui. Mas nossos filhos estarão. Ou nossos netos. Se não por nós, é por eles que devemos salvar o Senado. É aos interesses deles que o Senado servirá amanhã. Isso só acontecerá se nós, como povo, neste momento crítico de nossa história, tivermos a força para nos levantarmos contra os oligarcas que tomaram o Senado de assalto.

Protestos virtuais não são suficientes. Senadores não têm medo de Twitter, blogues ou passeatas na internet: senadores têm medo de povo nas ruas. Por isso, o único modo de conseguirmos que eles ouçam nossos vozes, escutem nossas exigências e finalmente cedam aos nossos propósitos é por meio de um grito que alcance seus ouvidos - um grito forte e inequívoco, que parta em uníssono dos gramados da Esplanada dos Ministérios e rompa as vidraças do Congresso.

Até que isso aconteça, não nos iludamos, nada vai mudar. Nada.

É chegada a hora, portanto, de pararmos com os resmungos preguiçosos e os muxoxos confortáveis, essas reclamações cínicas que nos dão a estranha sensação de dever cumprido e, nós sabemos, não resolvem nada. Não: é hora de agir. Ou então calar de vez.

Pois este é o nosso tempo, este é o nosso mundo - e retomar o Senado é o desafio que se impõe agora a todos nós."

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Conexões perdidas

Aeroportos são lugares solitários, ele pensava, enquanto seus olhos percorriam preguiçosamente o lento ir-e-vir dos passageiros na sala de embarque, uns para lá, outros para cá, andorinhas flanando de asas abertas, ansiosas em seguir viagem rumo ao mistério de suas vidas. Não se detinha em ninguém em particular; seus olhos contentavam-se em acompanhar os gestos e barulhos que constituíam aquele momento. Aeroportos são como o limbo do mundo moderno, sim, talvez seja isso, almas no suspense do porvir, em trânsito para o quê, para quê, aqui não há ninguém, ninguém está aqui, é aqui que se concentra toda a expectativa de que algo aconteça - não agora, mas daqui a pouco. Quando eu chegar. Quando eu voltar. Quando eu partir.

domingo, 2 de agosto de 2009

Nelson

Recém-chegado do mato, ainda sonolento e cansado, limito-me a deixar aqui quem melhor fala com as mãos, numa arenga que ressoa com força no espírito de domingo:

quarta-feira, 29 de julho de 2009

Os sem-suíte

Nos comerciais que vão ao ar nos canais de Marabá, as imobiliárias oferecem dois atrativos para tentar vender seus novos apartamentos: água e luz.

"Venha morar com água e luz!", é tudo que o locutor diz, como quem anuncia uma promoção das Casas Bahia.

Não somos a Noruega. Dúvidas, pergunte a quem derrete desde sempre no calor do Pará, mastigado por muriçocas gordas como vacas. E vive sem água e luz.

Por aqui, não é difícil encontrar.

terça-feira, 28 de julho de 2009

Trilha rumo ao presente

Cá estou eu, já dentro da gaiola que voa, enlatado no meu cantinho sem piar, imaginando quais espécimes vou encontrar na selva onde o Brasil enterrou seu passado. Quais Chibingas estarão lá? Quais Zés Parafinas me aguardam? Haverá olhos para enxergá-los, tolerância para entendê-los, coração para senti-los? Serei eu capaz de apreender a verdade deles e do que as matas insinuam aos sussurros, lamentos verdes de esquecimento e ternura?

sábado, 25 de julho de 2009

O título

Eis que finalmente nos encontramos, eu estava fugindo dele há anos, esse danado, não adianta, ambos sabíamos que nossa união era inexorável, uma certeza dos anos, ele viria quando eu estivesse pronto e ela viria com ele, viria assim como viriam os êxtases do verão, as negras dores da noite, a exaustão mútua da busca. Apareceu como nos meus delírios; sorrateiro, deslizando pelas minhas sombras, larva nos meus olhos, sem que eu percebesse a iminência da sua presença - um fantasma que se materializa porque se acredita nele. Aproveitou-se do Borges e usou as palavras dele para chegar até as minhas, até que seus propósitos se dissolvessem nos meus, nossos espíritos se tocassem asperamente no ar avaro das alturas, de modo que eu precisasse dele para respirar, oxigênio para me manter vivo nos céus: ele, o título.

sexta-feira, 24 de julho de 2009

Você

"Might I but live to see thee in my touch,
I'd say I had eyes again."
Shakespeare, King Lear

quinta-feira, 23 de julho de 2009

O barro do Maranhão

José Sarney é um escritor barato. Nos sebos de São Luís, seus livros custam 9 e 90. Ficam nas prateleiras de promoção.

Hoje à tarde, entrei num desses sebos. "José Sarney?", perguntei à atendente. A mulher, percebendo minhas intenções, gargalhou. Estão ali, ela disse, apontando a prateleira mais infame de qualquer sebo: a dos livros que voltaram à venda ainda inviolados, aqueles que ninguém quis, que falharam em cumprir sua missão no mundo, que de tão encalhados e ordinários são oferecidos ao preço de guaraná Jesus.

Nenhum autor, por pior que seja, merece esse destino. Nem mesmo José Sarney. Resolvi então fazer a boa ação do dia - resgatar dois livros de Sarney daquele cemitério das letras, onde até um imortal sofre sua pena eterna às traças, como se fosse um filho qualquer do Maranhão. Havia três títulos: um de poemas, outro de contos e o último de crônicas. Apanhei o de poemas (Os Maribondos de Fogo) e o de contos (Norte das Águas). O de crônicas eu deixei para trás: sou caridoso, mas nem tanto. Talvez compadecido, o caixa me deu um desconto. Morri em 15 reais. Escondi os livros numa sacola e saí de fininho do sebo.

Corri ao hotel, ansioso em descobrir logo o borogodó literário de Sarney. Respirei fundo, perseguinei-me e pedi desculpas ao Borges, cuja antologia pessoal me fazia companhia até então. Decidi começar pelo livro de poemas. Maribondos de Fogo. Que imagem poderosa, pensei. Perdi-me nessa metáfora. Suspeito que o maribondo esconda algum desejo reprimido, envolvendo ferrões e a figura masculina ardendo em fogo. Hum. Talvez represente a ausência do pai. Ou talvez ele tenha se confundido com um vaga-lume.

Reforço minhas suspeitas quando leio que os maribondos de fogo "sangram, picam e devoram". Eis aí uma influência clara de Rimbaud, o gêmeo francês do maribondo brasileiro. Kid Sarney parece mesmo estar à procura do pai, olhando o mundo como criança. Repare na inocência destes versos:

Os bois rodavam,
a moenda gemia
e meus olhos não sabiam.

As reminiscências da infância prosseguem mais adiante. O estilo é áspero, sofisticado:

Eu lembro
as coisas da terra,
as capineiras,
as folhagens,
a mamorana,
o andrequicé,
as encostas de cana-roxa
e as vassouras de botão.

Constrangido, passei a virar as páginas em desespero, buscando algo de algum valor estético, uma rima surpreendente, uma símile, qualquer coisa. Nada. Continuei me deparando com a figura do pai:

O bicho do homem nasce
se cria para morrer.
Trabalha sem descansar
atrás do que vai comer,
arruma mulher e cria
no canto duma morada:
dois corpos numa só vida
e neles unindo o homem
outros homens vão gerar.

Outros homens vão gerar. José Sarney de fato tem predileção por ferrões e varões, parece perseguir a segurança masculina. Talvez isso explique sua mania de se vitimizar perante qualquer situação adversa: a criança que implora, chorando, o carinho do pai.

Sarney quer mamar. É sério, quer mesmo. Quer a mãe. Percebi isso ao encontrar seu poema mais lírico: A Vaca e o Infinito. A Vaca e o Infinito. Bonito isso. Mame comigo:

As estrelas são vacas
que vagam e se perdem
nas enseadas da noite
(...)
Encanto ou morte,
deixaram-me.
Na Fazenda Maguari
desde aquelas chuvas
as vacas e as Três Marias
berram na Vi Láctea
e nos currais.

Como, meu Deus? Como? Como pode este senhor ser o que é, ter o que tem, poder o que pode? O senhor me respondeu, por meio das palavras sagradas de padim Sarney:

Mistérios dos céus eternos
que ninguém pode explicar.
A sorte da morte e a vida,
o vir, o ser, o deixar.

Numa estrofe inspirada, o vate finalmente se apresenta com sinceridade:

Eu barro do Maranhão

Sem dúvida. Finalmente concordamos.

Fechei o livro. Nem precisei abrir o segundo: já posso falar mal de José Sarney.

Eco

Queria participar do teu silêncio.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Morena infinita

As nuvens brancas dos céus da Bahia me levaram às lembranças dela, memórias constituídas de fatos e alucinações, descargas de luz desprovidas de matéria ou ordem, ricocheteando sem tréguas na minha alma. Digo a mim mesmo Ela é irmã dessas nuvens, sua ternura sempre imóvel e intangível, movendo-se intocada pelas alturas dos meus sonhos, onde meus desejos a observam, ansiosos como crianças à espera da mãe. Anulo meus conflitos na sua tranquilidade; descubro-me incapaz de divisar seu rosto, vejo somente pontos brancos espalhados pelo azul escuro do crepúsculo, agora ela já se assemelha a uma estrela, e brilha mais, tento senti-la, mas ela desliza pelos meus dedos, como se fôssemos feitos de matérias distintas, como se vivêssemos em dimensões ou tempos inconciliáveis. Não é ela quem amo, eu penso, amo a sua impossibilidade, amo a ternura que eu nunca terei. É fácil amar quem nunca irá te abandonar, ela diz, sem me olhar. Penso então que mesmo as nuvens têm fim, elas se partem em gotas e seguem sozinhas rumo à morte na terra.

terça-feira, 21 de julho de 2009

O belo

O belo não está nas coisas; está no interstício entre a matéria e a energia, no lugar e no tempo desconhecido da luz, nas frestas do mundo pelas quais escorrem nossos sentidos, escondido sob a mentira das palavras, na verdade dos sentimentos desconhecidos de cada corpo. Seu veículo supremo é a música, onde quer que ela esteja - no deslizar das tintas frescas, na arredia dança do vento, no contínuo espreguiçar das ondas, no brilho das cores sobre a terra, no calor que evapora o sexo dos amantes, sempre à espreita, até que o nosso cinismo seja derrotado pelo lirismo onde pulsa a poesia, no raro encontro da vida com o humano.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Em Santo Amado não tem GPS

Lá encontrei o silêncio do calor úmido, ao som dos lamúrios sussurrados pelo embate do jipe com a areia, em terras alheias ao homem, que nela trabalha seu suor e somente seu suor.

quinta-feira, 16 de julho de 2009

Palavras

Eu sabia. Eu sempre soube. Ela, não. Ela não sabia nem nunca soube nem nunca saberá: ela detém o privilégio da ignorância absoluta, ela sabe que uma estrela é uma estrela e que uma lua é uma lua, e que as palavras coincidem com as coisas, e que as coisas podem ser ditas pelas palavras, e que as palavras não matam as coisas e que as palavras servem para revelar a verdade do mundo.

Eu, não. Eu sabia desde o começo. Eu sempre soube que ela falaria amor, ternura e cumplicidade, e que ela falaria amor, ternura e cumplicidade até gastar os sentimentos que pensava ter, e que o tempo seria tempo novamente mesmo sem as palavras, sem que ela soubesse. Eu sabia.

terça-feira, 14 de julho de 2009

Bergman

Meu primeiro encontro com ele foi sonolento, eu admito. Aconteceu num sábado remoto, distante para os meus poucos anos, ainda estava preso à faculdade, procurando alvos para bombardear com o meu senso crítico juvenil - tarefa não só idiota como pentelha, que exigia dedicação em tempo integral, inclusive o sacrifício dos fins de semana e dos amigos menos complacentes.

O ambiente era desfavorável: um festival de cinema moderninho, sim, moderninho, uso moderninho com toda a ênfase pejorativa que a palavra pode carregar, aquele tipo de micareta das artes, no qual as obras em exibição, sejam filmes, livros, pinturas, instalações, músicas, o que for, reduzem-se a meros adereços festivos para o verdadeiro happening, o motivo real pelo qual boa parte das pessoas estão lá, elas não concedem, mas todas sabem que é verdade, estão lá para o desfile de egos que se organiza em forma de conversas pretensamente cultas nas rodinhas, observo papos e andrajos exagerados, desculpe, over, que servem tão-somente para gente insegura se afirmar perante gente insegura, recorrendo a platitudes surradas sobre o happening, falam sobre arte como bem poderiam falar sobre o tempo na rua ou sobre o que comeram à tarde, esses eventos vazios de ideia mas ao menos cheios de uísque, lembram-me das festas pantagruélicas da nobreza francesa ou russa do século XIX, salões que conheci pelos romances de Flaubert ou de Tolstói, rituais da aristocracia cujo único propósito resumia-se a dar livre curso às negociações sobre os contratos de casamento da elite. De modo que fica claro meu estado de espírito ao conhecê-lo.

Ao lado de um amigo igualmente curioso, porém dotado de uma serenidade budista, que então já envelhecia com muito mais inteligência do que eu, escolhi, pela conveniência do horário, o filme que seria o objeto, uma hora e meia depois, de meus faniquitos intelectualóides: O Silêncio, de Bergman. Pobre Bergman. Fui apresentado à sua genialidade sem pipoca ou namorada. Não se assisti a Bergman sem namorada, sem o calor feminino que defenda o calor do seu corpo diante das investidas glaciais da câmera do sueco, ás na arte de subtrair sanidade e fé de quem topa lhe conhecer, oferecendo como paga acesso ilimitado aos bueiros mais sombrios da alma humana.

Assisti àquela estranha obra-prima numa cópia estragada, pontuada por ruídos e interrupções - falhas que agora, refletindo calmamente, prefiro atribuir à ação brincalhona de algum gaiato na sala de projeção. Num determinado momento daquela experiência tétrica, não me lembro agora qual, talvez naquele em que o menino brinca com os anões no quarto de hotel, os anões rindo e dando cambalhotas, eu sem saber se acompanhava as risadas dos anões ou se dormia, o projetor se rebelou de vez com aquela pouca vergonha e... puf! Apagou.

As luzes se acenderam. Estranhei: o silêncio permanecia intocado na sala. Que saco, eu pensava, esse filme deveria se chamar O Sono. Passaram-se alguns instantes e nada. Tic-tac, tic-tac, tic-tac - e nada. Mais um pouco de nada depois, resolvi levantar a cabeça e esquadrinhar com os olhos as outras fileiras. Havia quatro pessoas dormindo, outras tantas absortas na tela em branco. Meu amigo dormia, mas esse não conta, ele sempre dormia. Eu resistia com afinco. Ninguém ousava dizer palavra. O filme voltou em alguns minutos, houve uns barulhos perto do final, reparei que a maioria acordou.

À saída da sala, eu, que de cinema não conhecia nada, mas que de empáfia conhecia tudo, como qualquer um que pense com os hormônios e os vazios da alma, fazia troça dos anões, ridicularizava o sorriso débil mental do menino. Meu amigo, ainda bocejando, limitava-se a assentir em silêncio. Foi então que notei uma das meninas dorminhocas da nossa sessão integrando-se alegremente a uma das rodinhas do happening. Fomos espiar o simpósio da futura intelligentsia. "Gente, um Bergman de primeira! No cinema é outra coisa, que espetáculo de direção!", perorava a soneca para os amigos, e estes fingiam concordar, provavelmente só esperando sua vez de falar.

Na cabeça fatalista dos meus 20, 21 anos, a participação de Bergman na minha vida encerrava-se ali mesmo. Aos 20 anos, não há clemência. Nada que o tempo e um pouco de tolerância não possam suavizar. Há dois anos, por algum motivo incerto, resolvi comprar O Sétimo Selo. Bastaram cinco minutos de Max von Sydow na tela para que eu percebesse estar diante de um pensamento poderoso, que iria encontrar eco na minha alma, que havia algo de Bergman em mim e algo de mim em Bergman, começava ali uma relação conflituosa de carinho entre mim e ele, do tipo que nasce quando descobrimos qualquer grande artista, penso eu.

Desde então, assisti a quase todos os filmes de Bergman, alguns deles muitas vezes. Não escapei incólume a nenhum deles. Em todos, mesmo os equivocados, Bergman penetra sem anestesia nas feridas do coração humano. Seu bisturi é afiadíssimo - e isso faz dele o cineasta mais verdadeiro que conheço. Seu domínio da técnica é pleno. Enquadramento, fotografia, edição: tudo se encaixa à perfeição para reproduzir os sentimentos e a tensão que a história requer. Sua escolha de atores é impecável, que o diga Liv Ullmann, atriz de superlativos conhecidos, que faz a obra de Bergman pulsar de vida.

O atributo que mais me fascina em Bergman, contudo, é a habilidade de eliminar as distâncias inerentes à película e, assim, aproximar, de uma maneira que ninguém fez, o teatro do cinema. Todos os seus talentos parecem convergir nesse propósito. Talvez encontre-se aí a genialidade dele. O medo da morte, a necessidade instintiva da fé, a violência incontrolável do homem, o amor, a solidão, a culpa: todos os temas que marcam a experiência humana são explorados com a força imaginativa do artista e o refinamento crítico do filósofo.

Filmes como Morangos Silvestres, Cenas de um Casamento, Luz de Inverno, Gritos e Sussurros, Persona, entre tantos outros, ensinaram-me a descobrir o tamanho da minha ignorância sobre as possibilidades do homem nesta terra. Sou grato a Bergman - e aquele happening que nos apresentou.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Escrever

Escrever dói. Dói escrever, quando se escreve de verdade. Escrever com as entranhas, não com as palavras, despindo a linguagem das suas bobagens, das suas mentiras: escrever sem camisinha. Escrever assim consiste num exercício de solidão e de agonia e de coragem. Precisa-se extrair, a exemplo de como se arranca um dente podre, toda a verdade do seu ser, por mais banal e constrangedora que essa verdade pode parecer. Não por capricho - por mera necessidade.

São inúteis os textos que, pouco interessa em qual formato venham ou sobre qual assunto versem, apresentam gordas camadas de mentiras, vestígios linguísticos do ego tirano, defesas obtusas do eu contra seus medos, suas imperfeições. Esses muros infantis erguem-se normalmente por meio da banalização do deboche irônico e da ridicularização fácil de tudo, no caso dos homens, ou no abuso da metáfora vazia, no caso das mulheres - a metáfora que serve à ocultação do sentimento e do significado real das coisas; palavras pobres para esconder outras palavras pobres.

Por óbvio, é impossível despojar-se completamente da vaidade no ato de escrever. Mas o alcance do sucesso na tentativa talvez seja a medida da qualidade do que foi escrito. Mesmo expulsa, contudo, a vaidade volta a vencer, ela sempre vence, golpeando com a severidade do julgamento crítico o que já não mais lhe pertence.

sábado, 11 de julho de 2009

Dia 10

Hoje é dia 10, ela disse, buscando meus olhos.

Eu não lembrava. Servi-me de vinho, o malbec covarde caía vagarosamente na taça vazia, tinha medo de entrar no nosso silêncio.

É mesmo, eu disse, falei para mim, procurava em vão palavras que fizessem algum sentido, qualquer sentido, oferecia a verdade dos meus olhos como consolo, era tudo que eu podia dar. Tocava Jack Johnson baixinho, talvez fosse algum assemelhado, o caso é que a música ressoava preguiça e langor, opção óbvia para anestesiar o senso crítico dos casais ébrios, facilitar o preâmbulo para o sexo e o amor, ou somente para o sexo, ou, melhor ainda, para o sexo e a descoberta do amor da vida, que seja, quaisquer um desses desejos que esperam obter prazer do outro, impulsos comunicados como sentimentos nobres e por meio de promessas tácitas de amor infinito, dezenas de mesas assim, consagradas à busca desesperada da felicidade burguesa, à procura de uma ilusão que os anos lhes mostrarão amarga. Havia ali a sutileza dos motéis de beira de estrada.

Mais um namoro, mais uma delas vai-se embora, abandonada pela minha solidão, ferida pelas lâminas do meu ego, mas sobretudo por um ideal impossível de amor
, pela impossibilidade da união entre dois seres humanos que não conhecem a si mesmos. O que eu quero, afinal? Digo Sim, é preciso enfrentar os problemas de frente, não está dando certo, eu sei que nunca vai dar certo, vamos acabar logo de uma vez com isso, essa troca de amabilidades não é medo de machucar o outro, é medo de se machucar Falo esses olhinhos molhados não me convencem, o seu medo é igual ao meu, nós dois somos iguais, iguais na nossa covardia e no nosso fracasso, admita isso. Os dias de cumplicidade vão longe, assim como as tardes metidos embaixo da coberta, dividindo preguiça e carícias, nós estamos mortos, não há mais sonhos

O garçom retira os pratos, fingindo não perceber nossa agonia.

Um ano e dois meses é muito tempo, ela diz, o que você quer fazer?
.....
Você não tem nada a dizer?, ela insiste.
Não há o que dizer, eu respondo.
Eu não posso lutar contra você, ela diz, inclinando-se para mim, aproximando suas mãos. Você se cansou de mim, como cansou das outras?
Estou cansado de mim, eu digo, digo com enfado. Não vamos racionalizar, travestir culpas e raivas em explicações confortáveis.
Assim é fácil para você, ela diz. Você está fugindo da verdade.
Não, eu digo com fúria, minha voz a ofende, eu estou em busca da verdade, esse é o problema, é isso que me afasta de tudo. A morte é a única verdade, e lidar com a certeza dela é a minha. Só posso oferecer essa explicação.
Não é suficiente, ela diz, eu preciso de amor.
Eu digo Eu também, e a tristeza dos meus olhos encontra a tristeza dos olhos dela, solto minhas mãos, elas já estão soltas há muito tempo, o calor dela não é mais o meu calor, minha visão se embota, estou imóvel, cada vez mais longe de mim mesmo, sua silhueta fica menor, não consigo distinguir seus cabelos, seus olhos, sua boca, sua imagem dissolve-se lentamente à minha frente, meus olhos bem abertos só enxergam um borrão. É hora de ir, eu digo, deixe-me ir. Ela não responde, ela não está mais lá. Meus olhos continuam abertos Você está aí? Alguém está aí? Minha voz cai no silêncio, reverberando na solidão do meu corpo, templo oco do meu narcisismo.

sexta-feira, 10 de julho de 2009

The Shadow of Sirius

Este é o título do mais recente livro do poeta americano W.S. Merwin, que acaba de lhe render seu segundo Pulitzer. Sirius é a estrela que ilumina 25 vezes mais do que o Sol, a estrela que mais reluz na escuridão da noite. Nós somos a sua sombra - e W.S. Merwin é um dos que mais brilham nela.

Entrevista de Bill Moyers com o poeta, um velhinho simpático, um mestre Yoda das letras, desprovido de qualquer vestígio de narcisismo:

http://www.pbs.org/moyers/journal/06262009/watch.html

quinta-feira, 9 de julho de 2009

Liberdade e prazer

Nós, os ocidentais sabichões do mundo contemporâneo, adoramos nos jactar do nosso amor pela liberdade - belo e opressor conceito, que, na boca de quem o costuma invocar, ou seja, os políticos, serve normalmente para esvaziar com vulgaridade uma frase, uma ideia, um discurso. Fala-se muito em Kant e Marx, portanto na emancipação do ser e tal, na tomada de consciência de que é possível tornar-se senhor da sua vida e governar seu destino; fala-se ainda na liberdade política que permite essa emancipação e na possibilidade de concretizá-la em sociedade, ao lado dos demais seres imperfeitos que compartilham desse direito.

São pensamentos que relacionam à liberdade ao ser, e passam ao largo do entendimento dos áridos impulsos inconscientes que provocam a busca pela expansão ontológica de si mesmo, ignorando o prazer ou a compulsão que se esconde sob essa necessidade. Afinal, o que é ser livre? Por que optar pela liberdade, ao invés de se acomodar à dominação do outro, à "servidão voluntária"? Há prazer ou felicidade nessa busca? São perguntas pertinentes, penso eu, e não mero axiomas.

Não tenho, é claro, a menor ideia das respostas. Mas há um aspecto da relação entre liberdade e prazer que me intriga - aquele que diz respeito ao outro, o sujeito distante que, segundo as correntes predominantes do pensamento ocidental, pouco tem a ver com a minha liberdade. Tenho dúvidas de que o ser humano consiga extrair prazer, sozinho, da soma dos atos que possam lhe tornar livre, seja sob qual prisma se pense esse estado último de espírito, aparentemente inalcançável.

Talvez por que a liberdade seja real apenas na existência do ato que a produz - falar, ler, escrever, atuar, pintar, cantar, enfim, expressar-se: amar. Esse agir, como notou Hannah Arendt, pode ser a raison d'être da liberdade e da vida plena do espírito. Ocorre-me que esses atos só possam alcançar seu real significado e prazer verdadeiro na união com o outro, no diálogo afetivo entre a minha e a sua liberdade.

Por insólito que pareça, e talvez seja mesmo, percebi isso quando c0nheci uma das prisões mais terríveis da América Latina. Os presos demonstravam um prazer quase libidinoso ao narrar as rotineiras rebeliões daquela cadeia. A excitação deles com esses rompantes de fúria me desconcertou.

Achei refúgio nas obras do ensaísta húngaro Elias Canetti, pensador que muito admiro. Ele observou, no clássico Massa e Poder, a ânsia de destruição inerente a esses momentos. Escreveu Canetti: “O próprio indivíduo tem a sensação de que, na massa, ele ultrapassa as fronteiras da sua pessoa. Sente-se aliviado por se terem eliminado todas as distâncias que o compeliam de volta a si próprio e o encerravam. Com a eliminação das cargas da distância, ele se sente livre, e sua liberdade consiste nesse ultrapassar das fronteiras”. As rebeliões, esses levantes extremos de violência, podem ser interpretados como a busca desesperada e colérica por uma liberdade perdida.

O mesmo prazer talvez encontre-se em outros fenômenos de massa : o êxtase (às vezes violento) da torcida de futebol num estádio, a sensualidade das danças ritmadas numa festa eletrônica, o vigor de algumas históricas manifestações de rua. Nessas circunstâncias, todos ali parecem buscar no outro, mesmo sem saber, a liberdade - e o prazer proveniente dela.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

As águas do Guaíba

Esta é a sua terra, disse minha mãe assim que o avião tocou o chão de Porto Alegre, eu com os olhos na janela, olhando com muita atenção o nada, fazendo que sim, os pensamentos mergulhados nas águas escuras do Guaíba, rio que desejava roubar a memória do passado que eu não vivi. Esta é a minha terra, eu repeti num sussurro, talvez em voz alta, tentando associar as palavras à verdade, ou a verdade às palavras, não sei. O que foi, meu filho? Nada, mãe, e devolvi-lhe um sorriso vazio, prontamente respondido com a mesma avareza, ela é minha mãe, eu te conheço, meu filho, fui eu que te pari. O avião taxiava preguiçosamente naquela manhã branca de verão, parecia adaptar-se à inclemência do calor gaúcho. Balançou muito, né? Nossa Senhora! Não percebi, talvez sim, o Onetti me botou para dormir. As crianças gritavam pedidos impossíveis para os pais, as crianças choravam com afinco para todo o avião, essas crianças que choram em todos os voos, inevitáveis como o pacote de amendoim ou a poltrona do meio. Não quero saber de mau humor, não nesta viagem, ela disse, eu preciso da sua força, preciso de alguém que me ajude. Então foi aqui que tudo acabou sem nem começar, a culpa deve ser das águas escuras do Guaíba, elas levaram embora as lembranças felizes da minha família, quando ela era isso, uma família, quando havia afeto, havia algum sentido, quando não havia eu. Restaram-me as sobras, os icebergs de mágoa e ressentimento, então é isso, coube a mim somente cuidar dos que sobreviveram, e eu, o que faço? As águas do Guaíba são escuras, eu digo. Sim, elas escondem o que a terra não consegue suportar, minha mãe diz, falando para algum fantasma que eu desconheço. Leve-me até a verdade, eu suplico em silêncio, leve-me até o significado das coisas que não posso entender, aponte-me o coração do sofrimento para que eu possa esmagá-lo, para que minha raiva se dissipe em suas veias sujas.

terça-feira, 7 de julho de 2009

Mistério

"Ce qui a été compris n´existe plus."
Paul Éluard

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Tia Filhinha

Dim-dom. Dim-dom. Dim-dom.

Sou eu, tia Filhinha, abra, por favor. Sim, meu querido, empurre de uma vez e suba. O apartamento continua igual. Tia Filhinha também. Tia Filhinha não é uma senhora - é uma caricatura de 86 anos e um metro e meio, se muito. Datilógrafa do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, funcionária pública há mais de 60 anos, ela ainda trabalha, aquela danada. Tia Filhinha nunca faltou. Aham: nunca faltou. Ou ao menos é o que me asseguram os colegas, na verdade não tenho certeza, o caso é que todos pensam assim.

Faz poucos anos que tia Filhinha finalmente rendeu-se à impessoalidade dos taxistas de São Paulo. Até então, ela ligava seu fusquinha verde, supostamente 1976, há quem duvide, de segunda a sexta, às sete e meia da manhã, sem atraso, isso eu lhe garanto. Castigava o pobre companheiro por 40 minutos, tempo necessário para arrastá-lo por 5 quarteirões, até depositá-lo no estacionamento do tribunal. Na volta, às seis da tarde, o sofrimento do fusquinha prolongava-se por 20 minutos adicionais, bote aí na conta do trânsito.

Antes de ser aposentado pela mais absoluta invalidez, o fusquinha verde era a tia Filhinha do mundo automobilístico, aquele que nunca iria brilhar na Fórmula 1, mas que sempre, enquanto estivesse com as peças no lugar, cumpriria suas tarefas cotidianas com diligência e regularidade. Não reclamem: a autoria da comparação pertence a tia Filhinha, lúcida e solitária anciã, ciosa dos seus deveres e responsabilidades para com a ordem das coisas, quem sabe atenta ao significado da rotina maquinal na preservação da sua sanidade, da sanidade de quem habita por tempo demais este mundo fora do tempo.

De modo que agora ela depende dos outros para cumprir seu ritual diário de comunhão com os demais humanos. Detesto depender dos outros, diz tia Filhinha, ainda mais se os outros são taxistas. Não fale assim, tia Filhinha, essas coisas não se falam, quando muito só se pensam, a senhora fique tranquila porque já pagou sua pena neste mundo, chegou o momento de relaxar, pare de trabalhar e vá viajar, alguém pode revisar aqueles discursos do presidente, ninguém ouve aquilo mesmo. Menino, responde tia Filhinha, ameaçando soerguer-se do sofá, com todo o respeito que eu devo a quem ainda não viu nada nesta vida, você vá para a puta que lhe pariu, e vá de táxi, que pelo jeito você gosta muito. O que é isso, tia Filhinha, de onde saiu essa raiva? Você me entendeu, não se faça de sonso e vá esquentar o café.

Entro na cozinha, acendo o fogão, rindo com os olhos na água. Meu celular toca, não reconheço o número. Seu Adalberto? Sim, é ele, quem fala? É do Tribunal de Contas. Pronto, chegou a hora da tia Filhinha, ai que merda. É que estamos preocupados, o homem diz. O que houve, não me enrole, diga logo. São 11 horas e sua avó ainda não veio trabalhar, estamos preocupados, você sabe dela? Falo mas as palavras não saem da minha boca, o homem percebe, se souber nos avise, por favor.

Desço as escadas feito um coelho, as possibilidades para o fim de tia Filhinha acompanham meus pulos, meu coração salta em descompasso com eles, não acredito, eu digo, não acredito. Deixo para trás o prédio da minha infância, o apartamento de móveis antigos e estéreis, apartamento de avó, aquela casa materializada em memórias secas, cheias de poeira que ainda cobrem o rosto de tia filhinha, que embotam minha visão das coisas, não vejo os carros e a vida nas ruas, vejo somente as lembranças granuladas de um passado incerto, vejo a imagem de tia Filhinha dirigindo o fusquinha verde nas frias manhãs de São Paulo, fazendo o que sempre lhe coube.

Faço sinal para um táxi. Ele pára. Abro a porta e me afundo no banco de trás, cabeça reclinada no vidro. O motorista, hábil leitor de humores estranhos, me dá um instante. Observo meu reflexo sem vida no vidro. Para onde, moço?, interrompe finalmente o motorista, ligando o taxímetro. Para o cemitério, amigo, para o cemitério.

Noite branca

Ergo a cabeça, meus olhos procuram conforto no colchão da noite, engano, percebo, é o brilho da lua cheia que me encontra, a música esvazia-se na luz branca, esqueço os sons de ausência que reverberam violentamente pelo chão, incomodando a tranquilidade negra de Brasília, lá está ela, digo em silêncio, lá está ela. Permaneço imóvel, sustentando o olhar da lua, a luz da lua branca arranca a memória que tenho dela, que tenho que esconder de mim. É inútil, diz ela, eu estou aqui, você está aqui, a noite nos trouxe aqui, não há fuga na noite, ela prossegue, não há sequer luta. A noite está branca, eu arrisco, sim, ela concede, é por isso que estou aqui. Minhas memórias vivem no escuro, digo, é por isso que você voltou. Eu nunca fui embora, ela diz, rindo, passeando os dedos pelos cabelos, sorriso verde de luz. Fecho os olhos e a luz se extingue. A noite retorna, trazendo de volta o frio e o barulho, não as pessoas, as pessoas não estão mais aqui, só ela e a nossa escuridão estão aqui.

sexta-feira, 3 de julho de 2009

Notícias de um país distante

Comandante-em-chefe há seis anos, líder moral da pátria, governando no ar fresco dos seus estratosféricos 80% de aprovação, o presidente pode muito. Do olimpo no qual ele fala, fala, fala... a nação escuta atentamente. E assimila. E concorda. E, assim, deixa-se guiar. Ao som das arengas presidenciais em favor dos corruptos, avançamos mesmerizados rumo ao triunfo da impunidade, num marchar lento porém inexorável. A memória do país não resiste à avalanche de escândalos, envolvendo deputados ou senadores, alguns obscuros, a maioria velhos conhecidos, que se sucedem sem parar na revelação de malfeitorias, desvios, abusos, ilegalidades – sempre episódios com nomes diferentes que soam iguais, em casos tão díspares que, ao final, assemelham-se estranhamente entre si. No tempo do ciclo de notícias sem descanso da internet, não há leitor atento ou cidadão preocupado que consiga fazer sentido de tamanho volume de informações: mal se sabe qual é o escândalo político do momento. Ao fundo, reverbera constantemente a voz rouca do presidente, defendendo algum desses senhores – entra dia, sai dia, entra dia, sai dia. A corrupção acaba vencendo pela exaustão. Nesse ambiente de fastio ético, qualquer fagulha de indignação extingue-se rapidamente, apagada pela descoberta imediata de algum novo escândalo, um mais insólito do que o outro.

Faulkner

O americano William Faulkner é um dos meus escritores de estimação. Sua tão admirada inventidade narrativa não me fascina por si só; invejo o uso que ele faz dela, penetrando nas frestas da consciência humana, na percepção dos conflitos e das dores que mais angustiam o homem. Com Faulkner (e outros poucos), a linguagem deixa de ser um empecilho para a literatura - e vira um bisturi para expôr as entranhas da alma.

Estava lendo agora há pouco seu discurso na cerimônia de entrega do prêmio Nobel. Alguns excertos:

"The writer must teach himself that the basest of all things is to be afraid: and, teaching himself that, forget it forever, leaving no room in his workshop for anything but the old verities and truths of the heart, the universal truths lacking which any story is ephemeral and doomed—love and honor and pity and pride and compassion and sacrifice."

"The young man or woman writing today has forgotten the problems of the human heart in conflict with itself, which alone can make good writing because only that is worth writing about, worth the agony and the sweat. "

"I decline to accept the end of man. It is easy enough to say that man is immortal simply because he will endure: that when the last ding-dong of doom has clanged and faded from the last worthless rock hanging tideless in the last red and dying evening, that even then there will still be one more sound: that of his puny inexhaustible voice, still talking. I refuse to accept this. I believe that man will not merely endure: he will prevail. He is immortal, not because he alone among creatures has an inexhaustible voice, but because he has a soul, a spirit capable of compassion and sacrifice and endurance."

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Do macho

Um cara está viajando de navio, o navio afunda, ele se salva e, depois de dias à deriva, é levado pelas ondas a uma ilha deserta.

O fulano, lógico, se desespera - mas eis que surge na praia outro náufrago: Juliana Paes, em trajes indecentes. O pânico dá lugar ao êxtase. A única atividade dele na ilha passa a ser comer a Juliana Paes. Toda hora. Todo dia. De todos os jeitos possíveis.

Seis meses depois, ainda nessa rotina, a Juliana Paes repara que ele anda tristonho:

- O que está acontecendo, meu amor?
- Nada, nada - ele responde, cabisbaixo.
- Tem algo que eu possa fazer para melhorar seu astral?

Ele pára, pensa. Vira-se para ela:

- Você pode se vestir de homem, botar uma barba postiça e vir andando lá do finalzinho da ilha?

A Juliana Paes, coitada, não entende bulhufas. Cada um com a sua tara, ela pensa. E faz o que ele pede. Ela vem caminhando lá do finzinho da praia, fantasiada de h0mem, e ele vai ao encontro dela. Ele diz:

- Cara, adivinha quem eu estou comendo? A Juliana Paes!

A piada é antiga, e os anos alteram somente a mulher que habita essa fantasia. Se você é homem, já riu à beça dela. Se você é mulher... bem, se você é mulher e quer entender a cabeça dos homens, comece por esta piada. Tenha certeza: não são apenas os machistas que acham graça.

Inércia

"Un esprit qu'on n'exerce à rien devient lourd et pesant dans l 'inaction."
Rousseau

Palco

O jovem toma a comédia por tragédia, e nisso consiste a causa de boa parte do seu sofrimento.

Do amor

O amor é um adversário tão imbatível quanto a morte. É tolice acreditar que se possa derrotá-lo, seja pelo combate, seja pelo abandono. Uma vez no campo junto a ele, a vitória não escolhe lado - o que não exclui a possibilidade de que se possa sofrer uma derrota prazerosa.

Bicicleta

Descobri-me igual a mim mesmo aos 11 anos de idade, moleque atrevido, transportei-me para aquelas manhãs geladas de junho, flanava de caloi vermelha pelas ruas ocas de Brasília, ao som de Aerosmith. Pensava na minha primeira ex-namorada, déspota da minha adolescência e das minhas incursões iniciais no corpo feminino, essa carne sagrada que, para um menino, constitui a prova suprema de generosidade divina para os pecadores desta terra. Começava a sentir ali as asperezas da pedra-pomes do amor. Não era uma dor feita somente de sofrimento; havia nela o prazer de me sentir em mim, aquela sensação era o meu berço, embalava sonhos confortáveis de plenitude, da união entre os pedaços de tudo que me constitui, sentimento de autossuficiência, de que aquela dor me bastava e eu bastava a ela, nós dois juntos, na comunhão entre o meu ser e toda a verdade sobre ele, num lugar onde não há finitude, incerteza, consciência ou desespero - apenas a serena satisfação de estar no mundo, de que tudo está como sempre foi e sempre deverá ser.

Seus olhos

Ela e seus olhos esverdeados bem sabem os que os meus tentavam dizer. Ladinos, esses olhos esverdeados. Fugiam em direção ao horizonte, preferiam o nublado do dia à luz apaixonada do meu olhar, deixando em seu lugar um sorriso de poucos dentes. Restava concentrar-me na leitura dos movimentos suaves dos seus lábios, esquecer o que a sua profusão de palavras bem concatenadas tentava esconder, decifrar o que o canto da sua boca me comunicava, só eu e ela. Fico sozinho com suas palavras e as minhas dúvidas, longe da sua alma e preso aos meus desejos de anular-me nela, entregando-me aos mistérios que se escondem sob aqueles olhos esverdeados.

São Paulo

Perco-me pelas ruas frias da noite de São Paulo, caminhando em calçadas que não me levam a lugar algum, por esquinas que se esquivam do meu olhar, buscando a solidão que habita o concreto, quero me misturar a ela, unir minha solidão à solidão dessa cidade sem alma. Minha solidão anseia por outra, amante insegura que precisa do outro para se sentir humana. Vim a São Paulo à procura do que eu sabia que não estaria aqui, do que talvez não esteja em nenhum lugar, que se esconde em becos sujos da alma, recantos podres e pestilentos, dos quais eu guardo distância, minha sanidade depende disso.

Talvez eu quisesse sofrer a rejeição que me levasse de volta ao pedaço da mim que pulsa em silêncio, onde estão os sentimentos de abandono e de perda, de ressentimento. Neurose estúpida, ela diz. Sim, eu respondo, isso tudo está no que é mais íntimo e singular em mim mesmo, voo solitário ao fundo do que nunca vai me abandonar: minha infância.

sexta-feira, 26 de junho de 2009

Mágoas

Haja desilusão! Dá vergonha, mas, em nome de uma réstia de honestidade intelectual, eis o que escrevi há cinco anos:

"O amargo fim dos amores contrariados

Os poetas costumam procurar nas estrelas ou na finitude do ser, mas eu - como péssimo conhecedor da alma humana - acho que a resposta pode ser encontrada mais facilmente no olhar. Se você prestar bem atenção, perscrutar de forma demorada aqueles olhos que já lhe iluminaram o dia num piscar, vai perceber, como um estalo, que simplesmente acabou. Fica ainda mais fácil, porém penoso, no caso das mulheres de olhos diáfanos e expressão transparente, congenitamente incapazes de dissimular com competência. Por ofício, essas são as mais eficientes na arte de metralhar mágoas e ressentimentos através da força do olhar sincero. Conseguem transformar os olhos em duas bolas de fogo, apontadas diretamente para o inimigo: você. Não há defesa que resista impune.

Pior do que o olhar de ódio é o de desdém. Esse faz danos permanentes. Os olhos que um dia já lhe penetraram o coração sedentos de paixão, desejo e carinho agora são arremedos de si mesmos. Pelo menos para você, que se vê obrigado a suportar calado a tortura e crueldade do olhar indiferente. É o momento no qual você tem certeza que virou apenas mais um. Logo depois do estalo, você ainda é forçado a fingir que não percebeu o fim, com medo de se ver vulnerável a outras safras de olhares indesejados.

Então tudo fica claro: ela só fala sobre si mesma, invariavelmente olhando para os lados, com a voz cansada, como se, mesmo falando somente dela, por estar perto de você até esse assunto a provocasse tédio.

É hora de picar a mula. Não faça perguntas, nem as responda. Tenha a dignidade de dissimular uma expressão igual, levante-se da mesa e vá embora, resistindo à tentação de conferir qual o derradeiro olhar que ela deitou sobre você."

Eu lia García Marquez demais.

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Eu e os outros

Abaixo, mais do que eu escrevia em 2004, ainda arrebatado pela fúria da frustração que se aproximava, aquela dolorosa descoberta de que o mundo não se encaixa na ideia que criamos dele, essa lancinante transição do imaginário para o real, do sonho para a experiência. Ainda não sabia que eu, assim como o mundo, também era feito de carnes, desejos, incertezas. Mirei nos outros - e acertei em mim:

"Pelo que já li não é de hoje nem de ontem, mas fico abismado com os níveis estratosféricos de imbecilidade e apatia das pessoas - quando digo pessoas, me refiro àquelas que comem ao menos três vezes por dia, foram alfabetizadas e têm onde morar. Às outras se concedeu a subumanidade , mas isso é outra história.


Pois bem. Justamente pelo privilégio de poderem ingerir mais de mil calorias por dia e terem estudado pelo menos 15 anos, essas pessoas (nós) têm o dever - senão político, social - de saber pensar. É o mínimo. Isso não é uma exclusividade do Brasil, nem dos tempos modernos. A humanidade caminha assim: explorando a massa, a casta produz avanços nas ciências, nas artes, na filosofia e em métodos de perpetuar a expropiação dos demais. É ocupação da elite, portanto, pensar. Caso contrário não estaríamos aqui.

O atual estado de letargia mental, aliás, retardamento mesmo, das pessoas que deveriam estar pensando alguma coisa é uma fenômeno mundial, creio eu. Os motivos para essa epidemia de cretinice estão muito ligados ao desenvolvimento político, econômico e cultural dos países ocidentais. Mas um pessoal bem mais competente já identificou com clareza e substância essas razões, não preciso entrar nisso.

Na verdade, o que me chama a atenção é o fato mais específico da minha geração ter abdicado de qualquer tipo de pensamento crítico. Cláudio Abramo, um dos maiores jornalistas brasileiros do século passado, chamava essa capacidade de "autonomia conceitual", algo que deveríamos aprender na universidade. Fico intrigado - mas não surpreso - com a ausência irrestrita de idéias da minha geração. Não me refiro apenas ao diminuto universo dos jornalistas.

Filhos da geração de 68, somos uma continuação nula daquele sonho. Acordados, limitamos nossas ambições - melhor dizendo, pretensões - ao microcosmo do emprego estável e do amor igualmente seguro. Num truque irônico do destino, percorremos um caminho inverso ao de nossos pais, trilha fatal rumo à mediocridade. Uma imagem invade minha cabeça: aquele exército de lemingues trotando certeiramente em direção ao precipício, indiferentes ao destino já traçado.

Lemingues bem alimentados e satisfeitos com as esmolas da vida, somos uma geração sem sonhos, ambições e bandeiras. Animais apolíticos e anódinos, nutrimos desdém, no melhor dos casos compaixão, pelas existências miseráveis e pestilentas das macabéas que nos cercam. Desde que não reclamem de lavar nossas roupas e varrer nossas casas por alguns cobres, é claro.

Nossos hábitos revelam nossa limitações. Satisfeitos com a mediocridade de nossa rotina, nos entupimos de uma subcultura (filmes, músicas e moda americanos) e de nossos subprodutos (novelas e afins). Numa variação pseudo-intelectual, há as figuras que curtem um samba na sexta-feira e um filme iraniano no domingo, mas que os consomem, ao fim e ao cabo, como um belo Big Mac.

Não queremos mais conhecer o mundo, provar o sabor de um café nas ruas de Paris, admirar a grandiloquência da Capela Sistina ou encher a cara num pub sujo de Londres. Quanto mais passear pelas praças de Caracas ou de Santiago. Não temos mais vontade de nos lambuzar de poesia e engolir de uma só vez todos os livros do mundo, com o sentido de urgência que só os desesperados pelas artes conhecem. Iliteratos e ignorantes, não queremos produzir ou criar nada; não pensamos em nosso legado. Somos seres de inteligência diminuta, denunciados pelo senso de humor proporcional às nossas idéias.

Eis no que nos transformamos : criaturas hiptonizadas pelo mundo intangível da internet, individualistas, cínicos, neurastênicos e reacionários. Numa palavra, medíocres.

Aqui ou acolá, somos uma juventude pequeno burguesa conservadora e idiotizada, o reflexo de nossas rotinas. Não queremos mais fazer da nossas vidas algo extraordinário, apaixonante e intenso. Nem o "desespero silencioso" de que Thoreau falava existe mais. Hoje, só resta o silêncio, cristalizado e intocável nos corações frios das vidas sem sentido."

Sensações

Texto de 2004:

"O meu humor anda meio azedo com algumas coisas. As pessoas daqui, por exemplo, sofrem no fervilhão dos meus pensamentos. Estou de mal com Brasília. O pôr do sol que vi agora há pouco foi soberbo, de cores intensas. Tem sido assim nos últimos dias: um espetáculo no final da tarde. Mas as pinturas que me impressionam à tardinha se contrapõem aos tons de cinza que eu vejo nas pessoas. Acho a maioria delas sem graça, medíocres mesmo.

Tenho pensado muito sobre isso. Não cheguei a grandes conclusões, mas percebi que essa sensação se deve muito à falta de paixão delas. Quando digo paixão, não estou fazendo uma conexão necessária com o amor romântico, que é a faceta mais visível desse tipo de sentimento. A pessoa não precisa necessariamente ter paixão por alguém, mas deve amar alguma coisa. Os olhos brilham. Pode ser uma profissão, um ofício, um hobby ou uma ambição. Se não houver paixão, do que adianta tudo isso? Virar estatística, assistir novela,
ficar na internet? Tem que haver mais na vida do que essa coisa mais ou menos. "Navegar é preciso, viver não é preciso", resumiu o poeta.

Na verdade, essa mediocridade me incomoda desde pequeno. É um sentimento perigoso, que pode descambar para a prepotência e o desprezo pelos outros. Mas me obriga a ficar alerta - e a admirar ainda mais quem vive com intensidade. Eu amo minha profissão, meus amigos, minhas músicas, meus filmes, minhas namoradas, minhas festas, meu mundo. Amo o pôr do sol que eu admiro todo dia. E por isso sou feliz."

Relendo esse desabafo agora, anos depois, percebo, além da juvenil fantasia de autorrealização, a resiliência dos sentimentos que me empurraram rumo aonde estou. O tempo cumpriu seu termo com competência, num ritmo de sombras e falsos compassos, pelo qual essas sensações escorreram furtivamente. Continuam aqui, frescas.

O mar

“Nosso coração, lançando-se em suas ondas, caindo com elas, esquece assim suas próprias falhas, e se consola na harmonia íntima entre a sua tristeza e a do mar, que confunde o seu destino com o destino das coisas”
Proust

Sofia

A personalidade de Sofia resultara do embate silencioso entre duas dimensões antagônicas de uma alma irriquieta. Nos bons momentos, prevalecia a mulher determinada, constantemente em busca de desafios e possibilidades, manifestada no sorriso caprichoso e nas ações voluntariosas -- eis a Sofia que ignorou os bons conselhos da mãe e abandonou tudo por Nova York. Quando este espírito que se julgava livre fraquejava ante os murros do destino, emergia a insegurança da menina à espera de ternura e poesia -- eis a Sofia que cobrava colo de Nova York. Sua beleza cintilante, revelada pela fragilidade de um rosto emoldurado pelo suave desenho de traços delicadamente irretocáveis, favorecia o reconhecimento da menina. A mulher, por sua vez, escondia-se nos subterrâneos de uma vaidade absoluta, encerrada sob a cortina de seus cítricos olhos de chocolate. Aos 26 anos, ela pressentia que se aproximava o momento definitivo e inadiável, aquele no qual uma das duas sairia vencedora. Seriam seus sonhos engolidos por esta nova persona? Seriam suas escolhas futuras demasiado limitadas? Sofia temia esse desenlace. Mas nada, àquela altura, parecia tão necessário, tão urgente. Era preciso respirar novamente. Era preciso recomeçar.

Niebla

"La vida es esto, es niebla"
Miguel de Unamuno