quinta-feira, 9 de julho de 2009

Liberdade e prazer

Nós, os ocidentais sabichões do mundo contemporâneo, adoramos nos jactar do nosso amor pela liberdade - belo e opressor conceito, que, na boca de quem o costuma invocar, ou seja, os políticos, serve normalmente para esvaziar com vulgaridade uma frase, uma ideia, um discurso. Fala-se muito em Kant e Marx, portanto na emancipação do ser e tal, na tomada de consciência de que é possível tornar-se senhor da sua vida e governar seu destino; fala-se ainda na liberdade política que permite essa emancipação e na possibilidade de concretizá-la em sociedade, ao lado dos demais seres imperfeitos que compartilham desse direito.

São pensamentos que relacionam à liberdade ao ser, e passam ao largo do entendimento dos áridos impulsos inconscientes que provocam a busca pela expansão ontológica de si mesmo, ignorando o prazer ou a compulsão que se esconde sob essa necessidade. Afinal, o que é ser livre? Por que optar pela liberdade, ao invés de se acomodar à dominação do outro, à "servidão voluntária"? Há prazer ou felicidade nessa busca? São perguntas pertinentes, penso eu, e não mero axiomas.

Não tenho, é claro, a menor ideia das respostas. Mas há um aspecto da relação entre liberdade e prazer que me intriga - aquele que diz respeito ao outro, o sujeito distante que, segundo as correntes predominantes do pensamento ocidental, pouco tem a ver com a minha liberdade. Tenho dúvidas de que o ser humano consiga extrair prazer, sozinho, da soma dos atos que possam lhe tornar livre, seja sob qual prisma se pense esse estado último de espírito, aparentemente inalcançável.

Talvez por que a liberdade seja real apenas na existência do ato que a produz - falar, ler, escrever, atuar, pintar, cantar, enfim, expressar-se: amar. Esse agir, como notou Hannah Arendt, pode ser a raison d'être da liberdade e da vida plena do espírito. Ocorre-me que esses atos só possam alcançar seu real significado e prazer verdadeiro na união com o outro, no diálogo afetivo entre a minha e a sua liberdade.

Por insólito que pareça, e talvez seja mesmo, percebi isso quando c0nheci uma das prisões mais terríveis da América Latina. Os presos demonstravam um prazer quase libidinoso ao narrar as rotineiras rebeliões daquela cadeia. A excitação deles com esses rompantes de fúria me desconcertou.

Achei refúgio nas obras do ensaísta húngaro Elias Canetti, pensador que muito admiro. Ele observou, no clássico Massa e Poder, a ânsia de destruição inerente a esses momentos. Escreveu Canetti: “O próprio indivíduo tem a sensação de que, na massa, ele ultrapassa as fronteiras da sua pessoa. Sente-se aliviado por se terem eliminado todas as distâncias que o compeliam de volta a si próprio e o encerravam. Com a eliminação das cargas da distância, ele se sente livre, e sua liberdade consiste nesse ultrapassar das fronteiras”. As rebeliões, esses levantes extremos de violência, podem ser interpretados como a busca desesperada e colérica por uma liberdade perdida.

O mesmo prazer talvez encontre-se em outros fenômenos de massa : o êxtase (às vezes violento) da torcida de futebol num estádio, a sensualidade das danças ritmadas numa festa eletrônica, o vigor de algumas históricas manifestações de rua. Nessas circunstâncias, todos ali parecem buscar no outro, mesmo sem saber, a liberdade - e o prazer proveniente dela.

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