terça-feira, 13 de outubro de 2009

O canto das cigarras

Foi numa manhã fresca de domingo que descobri as lembranças de uma infância feliz. Setembro chegara devagar, os tempos de seca iam-se embora, as primeiras nuvens da primavera acomodavam-se gentilmente no céu monocromático de Brasília. O sol estava cansado e perdia gradativamente suas cores, do mesmo modo que um lutador perde suas forças: um novo dia, um novo assalto. Era uma manhã feita para as pessoas, não para as coisas do mundo.

Brasília oferece muitas manhãs assim, manhãs que convidam as crianças a gastar suas energias nos gramados da cidade, os malhadores a suar no parque, os velhinhos a passear pelas quadras - e os demais a ver de perto tudo isso. Saí para tomar café-da-manhã numa padaria perto de casa: eu, os jornais e o dia. No caminho, passei por mangueiras e amoreiras que balançavam lentamente ao sabor do vento, aquele vento preguiçoso que antecede as chuvas da primavera, o movimento das folhas marcando o passo dos corredores na calçada e do meu ritmo no gramado verde-claro.

Sentei-me numa mesinha próxima ao verde da grama e das árvores, pedi um café com leite e, antes de abrir os jornais, parei para olhar o dia. Reparei então que as cigarras começavam a cantar, um coro desordenado de insetos e decibéis pedindo com estridência, em tons cada vez mais agudos, o amor da primavera. Em Brasília, é um ritual que se repete anualmente com a perfeita simetria das estações. Pensei nas cigarras. Elas vivem como larvas durante anos e anos, debaixo da terra, alimentando-se da seiva que escorre pelas raízes das árvores, até estarem prontas para subir à luz. Esse longo e doloroso prelúdio culmina numa intensa vida de duas semanas, nas quais as cigarras-macho cantam desesperadamente, gritam sem parar canções descomunais, sons poderosos que não cabem em seus pequeninos corpos, esforçam-se até a exaustão, tudo na tentativa de seduzir as cigarras-fêmeas. A cantoria só cessa quando elas conseguem acasalar - ou quando morrem tentando. Depois que procriam, é o fim. Cigarras são insetos limitados. Não sabem afastar predadores. Não vivem o suficiente nem mesmo para aprender a bater corretamente suas asas: cigarras vivem apenas para o ato do amor.

Um sujeito cínico, esse típico homem dos nossos dias, tão frívolo em sua seriedade pusilânime, diria que as cigarras vivem apenas para nos atazanar, elas e seus gritinhos histéricos. Talvez. Mas não naquela manhã de domingo. Naquela manhã de domingo eu finalmente consegui ouvir o que elas cantavam. Afastei meus outros sentidos, concentrando-me em buscar o significado dos sons zimmmmmmmmm até me acostumar com aquele timbre contínuo e suplicante de zimmmmmmmmmmm até que o zimmmmmmmmm se aproximasse de mim zimmmmmmm e o zimmmmmmm estivesse dentro, e não mais fora, e deixei sem medo que o zimmmmmmm me levasse ao que eu desconhecia, sim, não há mais controle, e ouvindo zimmmmmm voltei aos breus da memória que não existia, da infância perdida ou inventada, da infância sem o abandono e a dor, da criança que ouvia o zimmmmmm nas manhãs distantes de setembro e pressentia que havia na natureza o amor que não havia nas pessoas, e que o mundo poderia fazer sentido desde que o zimmmmmmm estivesse lá, naqueles poucos dias, fazendo-lhe companhia, sempre igual, sim, sempre do mesmo jeito, o zimmmmmm era a certeza que expulsaria o vazio, e ouvindo o zimmmmm nas manhãs perdidas de um tempo fora do tempo tudo daria certo, sim, eu sinto isso de novo, o zimmmmmm não é apenas um barulho nem uma epifania vulgar, as coisas não são como são, está ali o coração da poesia e do devir, ali pulsa o futuro da vida e da morte, e não o futuro dos homens, onde há morte e tudo que a antecede, mas o futuro como certeza de estar-no-mundo para sempre, zimmmmmm, estar como antes, como agora e como depois, estar plenamente, sem o vazio, na vida do que é infinito.

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