segunda-feira, 6 de julho de 2009

Tia Filhinha

Dim-dom. Dim-dom. Dim-dom.

Sou eu, tia Filhinha, abra, por favor. Sim, meu querido, empurre de uma vez e suba. O apartamento continua igual. Tia Filhinha também. Tia Filhinha não é uma senhora - é uma caricatura de 86 anos e um metro e meio, se muito. Datilógrafa do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, funcionária pública há mais de 60 anos, ela ainda trabalha, aquela danada. Tia Filhinha nunca faltou. Aham: nunca faltou. Ou ao menos é o que me asseguram os colegas, na verdade não tenho certeza, o caso é que todos pensam assim.

Faz poucos anos que tia Filhinha finalmente rendeu-se à impessoalidade dos taxistas de São Paulo. Até então, ela ligava seu fusquinha verde, supostamente 1976, há quem duvide, de segunda a sexta, às sete e meia da manhã, sem atraso, isso eu lhe garanto. Castigava o pobre companheiro por 40 minutos, tempo necessário para arrastá-lo por 5 quarteirões, até depositá-lo no estacionamento do tribunal. Na volta, às seis da tarde, o sofrimento do fusquinha prolongava-se por 20 minutos adicionais, bote aí na conta do trânsito.

Antes de ser aposentado pela mais absoluta invalidez, o fusquinha verde era a tia Filhinha do mundo automobilístico, aquele que nunca iria brilhar na Fórmula 1, mas que sempre, enquanto estivesse com as peças no lugar, cumpriria suas tarefas cotidianas com diligência e regularidade. Não reclamem: a autoria da comparação pertence a tia Filhinha, lúcida e solitária anciã, ciosa dos seus deveres e responsabilidades para com a ordem das coisas, quem sabe atenta ao significado da rotina maquinal na preservação da sua sanidade, da sanidade de quem habita por tempo demais este mundo fora do tempo.

De modo que agora ela depende dos outros para cumprir seu ritual diário de comunhão com os demais humanos. Detesto depender dos outros, diz tia Filhinha, ainda mais se os outros são taxistas. Não fale assim, tia Filhinha, essas coisas não se falam, quando muito só se pensam, a senhora fique tranquila porque já pagou sua pena neste mundo, chegou o momento de relaxar, pare de trabalhar e vá viajar, alguém pode revisar aqueles discursos do presidente, ninguém ouve aquilo mesmo. Menino, responde tia Filhinha, ameaçando soerguer-se do sofá, com todo o respeito que eu devo a quem ainda não viu nada nesta vida, você vá para a puta que lhe pariu, e vá de táxi, que pelo jeito você gosta muito. O que é isso, tia Filhinha, de onde saiu essa raiva? Você me entendeu, não se faça de sonso e vá esquentar o café.

Entro na cozinha, acendo o fogão, rindo com os olhos na água. Meu celular toca, não reconheço o número. Seu Adalberto? Sim, é ele, quem fala? É do Tribunal de Contas. Pronto, chegou a hora da tia Filhinha, ai que merda. É que estamos preocupados, o homem diz. O que houve, não me enrole, diga logo. São 11 horas e sua avó ainda não veio trabalhar, estamos preocupados, você sabe dela? Falo mas as palavras não saem da minha boca, o homem percebe, se souber nos avise, por favor.

Desço as escadas feito um coelho, as possibilidades para o fim de tia Filhinha acompanham meus pulos, meu coração salta em descompasso com eles, não acredito, eu digo, não acredito. Deixo para trás o prédio da minha infância, o apartamento de móveis antigos e estéreis, apartamento de avó, aquela casa materializada em memórias secas, cheias de poeira que ainda cobrem o rosto de tia filhinha, que embotam minha visão das coisas, não vejo os carros e a vida nas ruas, vejo somente as lembranças granuladas de um passado incerto, vejo a imagem de tia Filhinha dirigindo o fusquinha verde nas frias manhãs de São Paulo, fazendo o que sempre lhe coube.

Faço sinal para um táxi. Ele pára. Abro a porta e me afundo no banco de trás, cabeça reclinada no vidro. O motorista, hábil leitor de humores estranhos, me dá um instante. Observo meu reflexo sem vida no vidro. Para onde, moço?, interrompe finalmente o motorista, ligando o taxímetro. Para o cemitério, amigo, para o cemitério.

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