quarta-feira, 16 de setembro de 2009

O extermínio da memória

Aos primeiros raios de sol do Natal de 1973, um grupo de elite do Exército brasileiro adentrou a densa selva da região de Marabá, no sul do Pará, à caça dos comandantes do movimento armado que ficou conhecido como a Guerrilha do Araguaia, numa alusão ao rio de águas escuras que por ali corre. Os militares que integravam essa equipe de ataque pertenciam aos quadros do Centro de Inteligência do Exército, o temido CIE. Eles haviam se submetido a um rigoroso programa de combate na selva, estavam equipados com fuzis Fal e Parafal, armas capazes de estraçalhar carne humana, e vestiam trajes civis, como calças jeans e camisas, num sinal de que aquela era uma missão clandestina. Todos sabiam por que estavam lá. Estavam lá com ordens expressas de assassinar outros brasileiros, eliminando com eles quaisquer vestígios de existência da guerrilha.

Não poderia haver prisioneiros, e prisioneiros não houve. Aqueles militares sabiam que encontrariam, mais cedo ou mais tarde, somente um punhado de guerrilheiros famélicos e mal equipados, cuja esperança, àquele momento, resumia-se a sobreviver. Os guerrilheros provavelmente também sabiam o que iria acontecer, quando esse confronto sobreviesse. Quando os militares finalmente avistaram os guerrilheiros no final daquela manhã de Natal, não houve surpresas. A guerrilha estava liquidada. Cinco dos 16 guerrilheiros morreram ali mesmo – inclusive o principal líder dos comunistas, Maurício Grabois, oVelho Mário. Os outros 11 fugiram pela selva, cada um seguindo seu caminho. Todas as trilhas, entretanto, levaram ao mesmo destino.

Nos meses seguintes a essa ofensiva, conhecida como Chafurdo de Natal, que desmontou o que restara da guerrilha, os remanescentes foram capturados, torturados e executados. Um a um. Sem clemência. Os números mais confiáveis demonstram que os militares mataram 41 guerrilheiros, quase sempre depois de sugar-lhes informação e sangue. Do lado do Exército, não há relatos de baixas. Só há uma palavra para definir o que se passou na selva, no decorrer daqueles dias lúgubres: massacre. Cabeças de guerrilheiros foram decepadas e seus corpos, abandonados insepultos na mata, serviram de refeição para onças e porcos selvagens. Os depoimentos dos militares envolvidos no extermínio indicam que o que sobrara dos guerrilheiros foi enterrado em locais ermos da selva. Meses depois de encerrado o conflito, os restos mortais dos guerrilheiros foram queimados em fogueiras humanas preparadas pelo Exército, numa missão conhecida na caserna como “operação limpeza”.

Transcorridos 35 anos, a eliminação dos guerriheiros do Araguaia permanece como o episódio mais traumático e violento da ditadura. A memória daqueles dias sangrentos ainda assombra o país. O Exército e as autoridades civis não esclareceram até hoje o que se passou entre o fim de 1973 e o começo de 1974, quando os guerrilheiros foram exterminados. Explicações nunca foram concedidas. Corpos nunca foram achados. E os responsáveis nunca foram processados. Vítimas colaterais de uma chacina que não poderia ter existido, mas existiu, os familiares dos guerrilheiros foram abandonados ao limbo de suas lembranças.

As buscas que ora se iniciam constituem a última chance de muitos dos familiares dos guerrilheiros em dar um enterro a quem perderam. Os ossos que porventura sejam encontrados também representam, para esses parentes em eterna vigília, a possibilidade de conhecer um pouco do que se passou na selva. Triste do país que depende disso, de vestígios de ossos enterrados numa selva distante, para conhecer seu passado e sua verdade – quando ambos deveriam aparecer em documentos oficiais e em pedidos de desculpa dos responsáveis, muitos dos quais ainda vivem. É este o Brasil de 2009. Escreveu o escritor americano William Faulkner, em busca dos significados da memória: “O passado nunca está morto. Nem ao menos é passado”. O Brasil que ficou no Araguaia nunca morrerá, mas merece ser enterrado com dignidade.

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