terça-feira, 14 de julho de 2009

Bergman

Meu primeiro encontro com ele foi sonolento, eu admito. Aconteceu num sábado remoto, distante para os meus poucos anos, ainda estava preso à faculdade, procurando alvos para bombardear com o meu senso crítico juvenil - tarefa não só idiota como pentelha, que exigia dedicação em tempo integral, inclusive o sacrifício dos fins de semana e dos amigos menos complacentes.

O ambiente era desfavorável: um festival de cinema moderninho, sim, moderninho, uso moderninho com toda a ênfase pejorativa que a palavra pode carregar, aquele tipo de micareta das artes, no qual as obras em exibição, sejam filmes, livros, pinturas, instalações, músicas, o que for, reduzem-se a meros adereços festivos para o verdadeiro happening, o motivo real pelo qual boa parte das pessoas estão lá, elas não concedem, mas todas sabem que é verdade, estão lá para o desfile de egos que se organiza em forma de conversas pretensamente cultas nas rodinhas, observo papos e andrajos exagerados, desculpe, over, que servem tão-somente para gente insegura se afirmar perante gente insegura, recorrendo a platitudes surradas sobre o happening, falam sobre arte como bem poderiam falar sobre o tempo na rua ou sobre o que comeram à tarde, esses eventos vazios de ideia mas ao menos cheios de uísque, lembram-me das festas pantagruélicas da nobreza francesa ou russa do século XIX, salões que conheci pelos romances de Flaubert ou de Tolstói, rituais da aristocracia cujo único propósito resumia-se a dar livre curso às negociações sobre os contratos de casamento da elite. De modo que fica claro meu estado de espírito ao conhecê-lo.

Ao lado de um amigo igualmente curioso, porém dotado de uma serenidade budista, que então já envelhecia com muito mais inteligência do que eu, escolhi, pela conveniência do horário, o filme que seria o objeto, uma hora e meia depois, de meus faniquitos intelectualóides: O Silêncio, de Bergman. Pobre Bergman. Fui apresentado à sua genialidade sem pipoca ou namorada. Não se assisti a Bergman sem namorada, sem o calor feminino que defenda o calor do seu corpo diante das investidas glaciais da câmera do sueco, ás na arte de subtrair sanidade e fé de quem topa lhe conhecer, oferecendo como paga acesso ilimitado aos bueiros mais sombrios da alma humana.

Assisti àquela estranha obra-prima numa cópia estragada, pontuada por ruídos e interrupções - falhas que agora, refletindo calmamente, prefiro atribuir à ação brincalhona de algum gaiato na sala de projeção. Num determinado momento daquela experiência tétrica, não me lembro agora qual, talvez naquele em que o menino brinca com os anões no quarto de hotel, os anões rindo e dando cambalhotas, eu sem saber se acompanhava as risadas dos anões ou se dormia, o projetor se rebelou de vez com aquela pouca vergonha e... puf! Apagou.

As luzes se acenderam. Estranhei: o silêncio permanecia intocado na sala. Que saco, eu pensava, esse filme deveria se chamar O Sono. Passaram-se alguns instantes e nada. Tic-tac, tic-tac, tic-tac - e nada. Mais um pouco de nada depois, resolvi levantar a cabeça e esquadrinhar com os olhos as outras fileiras. Havia quatro pessoas dormindo, outras tantas absortas na tela em branco. Meu amigo dormia, mas esse não conta, ele sempre dormia. Eu resistia com afinco. Ninguém ousava dizer palavra. O filme voltou em alguns minutos, houve uns barulhos perto do final, reparei que a maioria acordou.

À saída da sala, eu, que de cinema não conhecia nada, mas que de empáfia conhecia tudo, como qualquer um que pense com os hormônios e os vazios da alma, fazia troça dos anões, ridicularizava o sorriso débil mental do menino. Meu amigo, ainda bocejando, limitava-se a assentir em silêncio. Foi então que notei uma das meninas dorminhocas da nossa sessão integrando-se alegremente a uma das rodinhas do happening. Fomos espiar o simpósio da futura intelligentsia. "Gente, um Bergman de primeira! No cinema é outra coisa, que espetáculo de direção!", perorava a soneca para os amigos, e estes fingiam concordar, provavelmente só esperando sua vez de falar.

Na cabeça fatalista dos meus 20, 21 anos, a participação de Bergman na minha vida encerrava-se ali mesmo. Aos 20 anos, não há clemência. Nada que o tempo e um pouco de tolerância não possam suavizar. Há dois anos, por algum motivo incerto, resolvi comprar O Sétimo Selo. Bastaram cinco minutos de Max von Sydow na tela para que eu percebesse estar diante de um pensamento poderoso, que iria encontrar eco na minha alma, que havia algo de Bergman em mim e algo de mim em Bergman, começava ali uma relação conflituosa de carinho entre mim e ele, do tipo que nasce quando descobrimos qualquer grande artista, penso eu.

Desde então, assisti a quase todos os filmes de Bergman, alguns deles muitas vezes. Não escapei incólume a nenhum deles. Em todos, mesmo os equivocados, Bergman penetra sem anestesia nas feridas do coração humano. Seu bisturi é afiadíssimo - e isso faz dele o cineasta mais verdadeiro que conheço. Seu domínio da técnica é pleno. Enquadramento, fotografia, edição: tudo se encaixa à perfeição para reproduzir os sentimentos e a tensão que a história requer. Sua escolha de atores é impecável, que o diga Liv Ullmann, atriz de superlativos conhecidos, que faz a obra de Bergman pulsar de vida.

O atributo que mais me fascina em Bergman, contudo, é a habilidade de eliminar as distâncias inerentes à película e, assim, aproximar, de uma maneira que ninguém fez, o teatro do cinema. Todos os seus talentos parecem convergir nesse propósito. Talvez encontre-se aí a genialidade dele. O medo da morte, a necessidade instintiva da fé, a violência incontrolável do homem, o amor, a solidão, a culpa: todos os temas que marcam a experiência humana são explorados com a força imaginativa do artista e o refinamento crítico do filósofo.

Filmes como Morangos Silvestres, Cenas de um Casamento, Luz de Inverno, Gritos e Sussurros, Persona, entre tantos outros, ensinaram-me a descobrir o tamanho da minha ignorância sobre as possibilidades do homem nesta terra. Sou grato a Bergman - e aquele happening que nos apresentou.

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