quinta-feira, 23 de julho de 2009

O barro do Maranhão

José Sarney é um escritor barato. Nos sebos de São Luís, seus livros custam 9 e 90. Ficam nas prateleiras de promoção.

Hoje à tarde, entrei num desses sebos. "José Sarney?", perguntei à atendente. A mulher, percebendo minhas intenções, gargalhou. Estão ali, ela disse, apontando a prateleira mais infame de qualquer sebo: a dos livros que voltaram à venda ainda inviolados, aqueles que ninguém quis, que falharam em cumprir sua missão no mundo, que de tão encalhados e ordinários são oferecidos ao preço de guaraná Jesus.

Nenhum autor, por pior que seja, merece esse destino. Nem mesmo José Sarney. Resolvi então fazer a boa ação do dia - resgatar dois livros de Sarney daquele cemitério das letras, onde até um imortal sofre sua pena eterna às traças, como se fosse um filho qualquer do Maranhão. Havia três títulos: um de poemas, outro de contos e o último de crônicas. Apanhei o de poemas (Os Maribondos de Fogo) e o de contos (Norte das Águas). O de crônicas eu deixei para trás: sou caridoso, mas nem tanto. Talvez compadecido, o caixa me deu um desconto. Morri em 15 reais. Escondi os livros numa sacola e saí de fininho do sebo.

Corri ao hotel, ansioso em descobrir logo o borogodó literário de Sarney. Respirei fundo, perseguinei-me e pedi desculpas ao Borges, cuja antologia pessoal me fazia companhia até então. Decidi começar pelo livro de poemas. Maribondos de Fogo. Que imagem poderosa, pensei. Perdi-me nessa metáfora. Suspeito que o maribondo esconda algum desejo reprimido, envolvendo ferrões e a figura masculina ardendo em fogo. Hum. Talvez represente a ausência do pai. Ou talvez ele tenha se confundido com um vaga-lume.

Reforço minhas suspeitas quando leio que os maribondos de fogo "sangram, picam e devoram". Eis aí uma influência clara de Rimbaud, o gêmeo francês do maribondo brasileiro. Kid Sarney parece mesmo estar à procura do pai, olhando o mundo como criança. Repare na inocência destes versos:

Os bois rodavam,
a moenda gemia
e meus olhos não sabiam.

As reminiscências da infância prosseguem mais adiante. O estilo é áspero, sofisticado:

Eu lembro
as coisas da terra,
as capineiras,
as folhagens,
a mamorana,
o andrequicé,
as encostas de cana-roxa
e as vassouras de botão.

Constrangido, passei a virar as páginas em desespero, buscando algo de algum valor estético, uma rima surpreendente, uma símile, qualquer coisa. Nada. Continuei me deparando com a figura do pai:

O bicho do homem nasce
se cria para morrer.
Trabalha sem descansar
atrás do que vai comer,
arruma mulher e cria
no canto duma morada:
dois corpos numa só vida
e neles unindo o homem
outros homens vão gerar.

Outros homens vão gerar. José Sarney de fato tem predileção por ferrões e varões, parece perseguir a segurança masculina. Talvez isso explique sua mania de se vitimizar perante qualquer situação adversa: a criança que implora, chorando, o carinho do pai.

Sarney quer mamar. É sério, quer mesmo. Quer a mãe. Percebi isso ao encontrar seu poema mais lírico: A Vaca e o Infinito. A Vaca e o Infinito. Bonito isso. Mame comigo:

As estrelas são vacas
que vagam e se perdem
nas enseadas da noite
(...)
Encanto ou morte,
deixaram-me.
Na Fazenda Maguari
desde aquelas chuvas
as vacas e as Três Marias
berram na Vi Láctea
e nos currais.

Como, meu Deus? Como? Como pode este senhor ser o que é, ter o que tem, poder o que pode? O senhor me respondeu, por meio das palavras sagradas de padim Sarney:

Mistérios dos céus eternos
que ninguém pode explicar.
A sorte da morte e a vida,
o vir, o ser, o deixar.

Numa estrofe inspirada, o vate finalmente se apresenta com sinceridade:

Eu barro do Maranhão

Sem dúvida. Finalmente concordamos.

Fechei o livro. Nem precisei abrir o segundo: já posso falar mal de José Sarney.

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